Diário ainda do dia 25 de junho de 2017(domingo)
Domingo. Final da manhã, no New Market.
”(…) Teve uma idéia, pediu a Abdul que ligasse para o contato do aplicativo, ao que Abdul prontamente atendeu, entendendo assim que havia sido aceito com guia 'dos brancos'. Do outro lado uma voz responde. “Já estou chegando! A chuva parou o transito". Ah! Aquela sensação.”
Eu, fiquei no quarto escrevendo esse diário, pelo menos uma boa parte do mim-mesmo ficou, enquanto Almeida saia para o New Market levando, digamos, a outra. Ele ia comprar lembranças para toda família, enfim uma festa. Infelizmente sobre essa parte não tenho grandes relatos a fazer, apenas alguns flashes que Almeida me contou, quando finalmente, após desencontros, nos encontramos no final da tarde, por sorte.
“Sustentando aquele misto de expectativa e temor, por entrar em contato com uma pessoa real, local, e sem ter muita noção do que viria enquanto expectativa do outro lado e, (…) é bom confessar, tão pouco do lado dele; se entrega à observação do que ocorre fora dele, em um dos muitos pátios do mercado, que estava a sua frente, aquietando assim os cavalos galopantes do pensar.
A chuva passou e os imensos plásticos sujos foram retirados de sobre mil objetos que estavam à venda. Patinetes multicoloridos; bicicletas de crianças; algo como suportes multiuso para 'vassouras' e rodos, feitos com madeira rústica e pedaços de lata de óleo e leite fazendo as junções das partes. Essas ‘vassouras’ mereciam uma descrição mais detalhada. Não eram vassouras com cabo, ele não havia visto dessas por lá. Eram na verdade varredores de chão, como se fossem imensos espanadores, sem cabo, feitos de fibra de alguma palmeira, de um metro de comprimento, seguradas pelo local onde todas as fibras se encontram; com os braços se tornando o cabo e as pessoas se agachando e se aproximando do chão. O chão era limpo com esse maravilhoso objeto e/ou com panos suspeitos, mas sempre com pessoas se agachando. Algumas mulheres não agachavam, mas se dobravam em 180 graus como um sanduíche, sem flexionar as pernas! Era possível presenciar muitas delas, além de alguns homens, varrendo auto estradas imensas, em meio a vacas e muito carros, como se fossem o quintal de suas casas. Inclusive os buracos eram bem varridos.
Assim distraído, sozinho em frente ao portal principal do New Market a observar, ele pode relaxar um pouco enquanto esperava. Seu colega já havia se enfurnado num dos infindos labirintos de lojinhas, em busca do amuleto para um de seus filhos. Abdul o acompanhara, porém, cuidadosamente deixando um 'Abdul 2' ao lado dele, que iria levá-lo à loja onde estava seu colega.
Mas quem vem lá? Pela descrição era a pessoa do aplicativo. A saudação tímida só colaborou, com o pudor necessário, para o que seria um encontro bastante significativo. Disseram um ao outro seus nomes reais, pois nos aplicativos é comum a troca de nomes. Ele, João; a pessoa do aplicativo, Rajj, na verdade, MD Rashedul, como milhares de muçulmanos. Entraram pelas alamedas do grande labirinto semi iluminado em busca do colega, enquanto trocavam, num inglês incerto as primeiras frases. Rajj pertencia a uma família muçulmana de imigrantes de Bangladesh, moravam num bairro da grande Calcutá, a avó sofria do mal de Alzheimer, urinava pela casa toda, havia uma sobrinha de 4 anos, a alegria da casa, a cunhada cuidava dessa casa, o irmão trabalhava em biscates, e Rajj, que dormia num sofá da pequena sala de estar, entre poças desidratadas de urina, buscava um visto indiano, assim como trabalho, para poder iniciar um MBA(pós graduação) em administração. Esse encontro prometia, isso tudo foi sabido pelos corredores das centenas de lojinhas/casa do enorme mercado. Dalí foram para um restaurante comer. Ele queria aprender a comer com as mãos; melhor dizendo, com a mão direita.”
No quarto de nossa B&B, eu terminei os diários do três primeiros dias. Me sentia pressionado entre viver e relatar o vivido, levemente angustiado. Era com se escrever traísse a vida, roubando dela o seu tempo. Mas, e se escrever fosse viver? Eu ia descobrindo o quanto um fato, vivido intensa e significativamente, pode gerar infinitas profundidades. Apenas com aqueles três dias vividos, e sem fazer idéia do que viveria ainda pela frente, eu já poderia arrumar minhas malas e ‘voltar' para ‘casa’. Já possuía conteúdo suficiente para um livro inteiro de diários. Aliás, para emergir conteúdos, eu nem precisava ter vindo às Índias. Bastando sentar e tomar café, se tanto. O fluxo de vida que pulsa em meu peito, no de qualquer pessoa, independe de exotismos de experiências inusitadas. É no lavar de panelas que o divino ocorre e, de repente, “quando quanda”(salve Guimarães!) você se dá conta de que viveu e se apropriou da essência de algo.
Mas, talvez ainda não convencido totalmente disso, acabei vindo para a India. Queria aprender a comer com as mãos; queria mergulhar na rotina de uma família muçulmana; queria entender a força que leva alguém a dar sua vida em nome de Alah; queria, queria, queria. E queria fazer isso, sem necessitar de emprestar emoções de um personagem literário! A vida bem sucedida, feliz, tem preços interessantes(a melhor e a pior palavra do mundo). Estou bastante satisfeito(outra ruim) com os meus, e também tenho buscado traí-los, na medida do possível. (Esta frase me soa enigmática, mas vem de um lugar bem no fundo de mim; tão fundo que nem eu compreendo bem. Quem sabe um dia… Mas aqui estou eu, no quarto, lembrando, imaginando, e com toda pobreza digna de cada palavra, tentando balbuciar alguma tradução para o intangível infinito de linhas que tramam o vivido.
Por onde andaria Almeida? Teria achado o adequado amuleto? Teria se encontrado com alguém local? Marquei com ele num restaurante muçulmano, perto do Mercado Central. Era hora de ir. Publiquei os diários, subi umas fotos para o face e fui, sem internet, ao seu encontro.
“O restaurante muçulmano, era um semi subsolo, de onde sentados, podíamos assistir numa vidraça imensa, a partir do joelho que quem passava, um movimento orgânico e frenético de um cruzamento de 4 ruas, onde centenas de pessoas, carros fechados(poucos), algumas vacas, muitíssimos Tuc-Tucs(uma moto triciclo com motor de trator coberto por uma colorida carroceria fechada do tamanho de uma carrocinha, onde(teoricamente) sentariam duas pessoas atrás e uma na frente ao lado do motorista; além de vários rikshaws, que são carroças altas, onde sentam duas pessoas, puxadas por um homem, normalmente magérrimo e de certa idade. Parecia que ninguém além de João, reparava naquele transbordamento, naquele transtortamento de compreenssibilidade. Almeida e Rajj, estavam bem ocupados e felizes escolhendo a comida. Seria sua primeira vez comendo com a mão.
As mãos e os pés muçulmanos, do pouco que João viera aprendendo naqueles dias, têm lá sua complexidade de usos. Mão direita para comer, para cumprimentar e para saldar o Asalam Walekum; mão esquerda para lavar o traseiro, sempre com água, e para pegar coisas sujas. Os pés são lavados periodicamente. Pois bem, João mergulhou na exótica e apimentada refeição. Na pequena sala onde era o restaurante, isso logo chamou atenção e, aos pouco, já havia muitos homens interessados em dar conselhos sobre como misturar o deep rice (arroz) com as massalas(cozidos Hindus cremosos com ou sem carne) com ensopados de diversas carnes. Havia um ar de festa e Rajj explicou, que naquela tarde terminara o jejum de um mês do Ramadã, e que no último dia era rigorosamente total, sem água ou alimento sólido. Agora já se iniciava o Eid Mubarak, algo como a Páscoa Muçulmana, então seriam três dias de festa, de domingo à terça feira.
Foi aí que veio a grande oportunidade, óbvio, carregada de riscos. Rajj convidou João para ir passar a virada da noite do Eid Mubarak junto com sua família, na periferia de Calcutá, num bairro de imigrantes de Bangladesh."
Eu, sem internet me perdi do tal restaurante muçulmano. Quando me encontrei com Almeida, ele já havia almoçado e me disse que acabou convidando o Abdul. e que haviam se divertido muito aprendendo a comer com a mão direita. Eu, estava me sentindo bastante satisfeito, ainda com o nutritivo café da manhã, mas confesso que estranhei a sensação de que já tivesse almoçado, aliás como se tivesse comido igual a um mulá (sacerdote letrado muçulmano). Estranho aquilo.