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Sempre vivi numa mochila. Foi assim que tudo começou...

Vale de Luz (Nova Friburgo), 28 de maio de 2017

Viajar sempre ocupou um lugar central em minha vida.

Querida/o amigo!

Essa é uma primeira carta de muitas, espero, das “Cartas do Fundo” do Coração do Mundo. Aqui vou, aos pouquinhos, me despindo, me revelando, me traindo e renascendo, diante de mim, pra você e contigo, sempre unidos, embora distantes. Simone de Beauvoir, no prólogo de 'A força da Idade’, me inspira ao escrever: “…(seja ele) medíocre ou excepcional, se um indivíduo se expõe com sinceridade, todo mundo, mais ou menos, se sente colocado em jogo. Impossível jogar luz sobre sua vida sem clarear, aqui e ali, a dos outros. (…) O estudo de um caso particular informa melhor que respostas abstratas e genéricas: é isso que me encoraja e examinar o meu”.

Assim inicio minha correspondência contigo, ainda que seja um monólogo, onde somente um escreve, estou certo de que você escreverá também suas cartas a outros que as acolham e levem consigo, adiante e dentro.

(…)

É o ano de 1975, janeiro. Tenho treze anos, quase catorze, e arrumei a mochila para minha 1a viagem sem adultos. Amanhã saio. Vou passar uma, ou talvez duas semanas na cidade de São Paulo, a 600Km da minha, no imenso apartamento da tia de meu querido amigo João, também ele por volta dos treze. Estou me preparando a meses para essa viagem. Juntei dinheiro de toda parte: sou 'sócio' de minha mãe na venda de bolinhos fritos de mandioca com queijo derretido dentro, no recreio da querida Escola Municipal Rui Barbosa. Cada dia, dez minutos antes de tocar o recreio, dou um jeito de sair e corro de bicicleta em casa. Lá, um embornal branquinho, feito de pano de saco de açúcar cristal, com uma travessa cheia de bolinhos fritos dentro dele, me espera. Pego o precioso conteúdo, como um, 'que rachou'. Pedalo rápido de volta, o recreio já começa e num piscar, ja vendo todos, são deliciosos. Só os professores compram quase tudo. Também trabalho com meu pai em ‘nossa' Mercearia São Sebastião, essa grande e verdadeira escola familiar dos Guerra.

Mais do que a passagem de ônibus, da empresa Salutaris, espero com todas as minhas forças, que as economias nascidas destas insuspeitas sociedades familiares, engordadas por irmãos e por meus próprios pais, na figura de minha mãe, sejam suficientes para comprar, em São Paulo,… meu primeiro violão.(…)

A viagem de Nova Friburgo para SP é de noite; uma noite inteira. E trocava-se de ônibus em Niterói, para grande preocupação de mães e tias. Tudo certo e, no dia seguinte, cheguei a São Paulo. A rodoviária, toda colorida, com o teto transparente de gomos de plástico. Era bonita demais da conta, com o sol da manhã entrando e deixando tudo transformado, de cor transformada. A tia de João nos esperava na porta do ônibus. (…) São Paulo prometia.

(…)

Hoje já é quarto dia de viagem, a tia de João, telefona toda noite para a mãe dele e conta as notícias do dia. Depois da ligação dessa noite, ela nos dá a notícia terrível: em Friburgo, o Neco, um querido amigo, tb de 13 anos, foi atropelado, de bicicleta. Bateu a cabeça no meio fio de paralelepípedos, e está entre a vida e a morte. É difícil para um menino de 13 anos, fazer noção 'dessas coisas'… de que se morre, por exemplo. Mas a gravidade de situação nos tomou. Continuamos os nossos passeios, mas sempre nos lembrávamos do Neco. Não sabíamos, não nos foi contado, mas ela já havia falecido. Esse fato ia trazer rumos fantásticos para minha vida. Ah, a morte, essa viagem colossal, paradoxal, terrível liberdade, momento em que tudo o que é vivo, vivencia a radicalidade do amor maior, que tudo oferece e que tudo recebe.

(…)

Bem, a compra do violão é, até hoje, uma cena praticamente impossível descrever; e portanto é uma parte muitíssimo importante dessa carta. Eu ia e vinha cada dia às muitas lojas que vendiam violões. Dava para ir à pé do prédio onde estávamos, perto da praça da República. Mas eu não conseguia me decidir. João, paciente, com seus olhos de anjo, azuis, me acompanhava cúmplice. Finalmente me decidi, foi um momento nervoso de entusiasmo, assim, mas bom. Foi no Mapin, em frente ao Teatro Municipal. Era um bonito instrumento, modelo 'Tranquilo Giannini'. Barato mas de qualidade razoável. Já tocava violão fazia um bom tempo(nunca lembrei bem quando começou isso). Mas a chegada do ‘meu' violão me encheu de sonhos praticáveis. Sempre fui um sonhador fazedor, desde cedinho. Mal sabia eu, mas bem pressentia, que nunca mais nos separaríamos, eu e os muitos violões que passariam por minhas mãos. Aquele violão, foi um significativo investimento coletivo, meu e de minha família, numa marca central minha: musicar a vida, cantar e fazer cantar. Foi, sem dúvida qualquer, um 'investimento de impacto', muito anos antes do conceito nascer.

Nos dias que sucederam à compra do violão, muitos momentos incríveis foram vividos por nós dois, isso seria motivos para muitas outras cartas. Mas na verdade, depois que comprei o violão já podia ir embora. Queria mostra-lo para meu pai, meus irmãos, meus amigos e, queria ver o Neco, queria participar dos cuidados e da dor do nosso grupinho de adolescentes.

A chegada a Friburgo foi muito impactante, pois a primeira noticia foi a da morte do Neco. Depois fomos entendendo que ele já havia falecido a vários dias, em que a missa de sétimo dia seria no mesmo dia de meu aniversário de catorze anos, sete de fevereiro, dia no qual estreei, na missa, meu novo Tranquilo Giannini, do Mapin. Foi um dia glorioso(e que vale outra carta) e dessa morte nasceu, para mim, o ALJOC (Ala Jovem Cristã), grupo de jovem da Igreja Católica de Santa Terezinha, em meu bairro, trazendo, para minha história, a semente de algo que nunca mais deixaria de fazer: participar. Ser parte desejante e confiante de grupos, os mais diversos, inadjetiváveis.

Senti, hoje me dou conta, tanto orgulho de tudo naquela noite na missa do Neco. Orgulho dele que era um rapaz lindo, simpático e muito querido; orgulho de nosso trabalho de jovens tão novos, lavando a igreja para a missa; arrumando as flores; ensaiando as músicas para cantar; escrevendo os poemas para falar; e depois da missa, quietinhos, comendo pastel na casa de minha família, afinal era meu aniversário de catorze, e minha mãe fazia, ela mesma a massa. Morte e celebração combinam muito, sempre achei, sempre vivi.

Te abraço, com carinho!

Tião

P.S.: e não é que tenho até foto pra provar que já fui até parar na Nova Zelândia!

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