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23/06, o dia que (me) perdi (de mim).


CARTAS DO FUNDO DO CORAÇAO E DO MUNDO

Diário dia 23 de junho de 2017

Semanas intensas precederam minha entrada naquele imenso avião da Emirates, na madrugada do dia 23 de julho de 2017. Os diversos processos de trabalho, para serem cuidados e preparados para três semanas de distância física, os processos novos entrando, filhos, a própria viagem, o projeto "Cartas do Fundo”… Saí do último seminário às 22:30h de quinta 22/06, com mochila, diretor para o aeroporto do Galeão. Lá me encontrei com meu colega de trabalho em Petrópolis, o D'Almeida. Os quatro primeiros dias da viagem serão um seminário internacional onde vamos apresentar e também receber e estudar a apresentação de mais quatro países que estão desenvolvendo projetos similares ao que coordeno em Petrópolis.

Abre parêntesis (o projeto consta de reduzir a incidência de desastres, em dez comunidades de alto nível de vulnerabilidade a eventos sócio climáticos de Petrópolis - Deslizamento de terra, enchentes, desabamentos em geral, evacuações e incêndios, entre outros. Essa redução se dará, por conta de muitos fatores mas, no projeto, a nossa aposta está no fortalecimento da relação&articulação entre escolas públicas de cada um desses territórios com as demais instituições existentes e presentes nos NUDECs - Núcleos Comunitários de Defesa Civil). Bem, Almeida e eu estamos agora dentro do avião, voando para Calcutá, no nordeste Indiano, para esse seminário cujo nome é lindo: Writers and Learners (escritores e aprendizes), minha cara, a vida a toda, embora nem sempre como o rigor necessário.

Mas volta um pouco o filme para um desabafo: Putz!! O Galeão cresceu muito. Levamos quase 25 minutos depois da policia federal até o portão pelo qual entraríamos no avião. Gente, foram, sei lá, 1km e meio de Duty Free(um tipo de shopping), de uma exposição a produtos e mais produtos, que não fazem o menor sentido em minha vida, e para os quais eu era levado por caminhos pré definidos, que não tinha outra opção dentro do aeroporto, e então era jogado, perfumado, recebido e ensorrisado por jovens bonitas/os sonolentas/os numa madrugada claustrofóbica de aeroporto, contaminando meus pensamentos, meus sentimentos, através de uma oferta desconectada de minhas necessidades. Bem…vamos lá…algo em mim quer todos aqueles produtos, algo eufórico e imaturo e presente e forte em mim. Esse lado meu quer tanto que preciso escrever isso aqui para exorcizar, para colocá-lo fora de mim e olhar para ele. Vem cá bicho fera comprador, deita em meu colo que vou te contar minha história. Somente nossa história pulsante e contada, e considerada como valor, nos salva do consumo. De todo ele.

Dentro da avião. Caramba. O que? Oi? Tião, você está indo para o outro lado do mundo. Aeromoça passa e manda fechar computador… Mas… mas preciso finalizar o texto para mandar para BH. Avião decola. Esqueci que tinha claustrofobia, já faz muitos anos, mas é fogo esquecer disso. É como se nua tivesse sido tão penoso. E foi? Cadê o Rio? Já passou.Tudo escuro lá fora. Estou exausto. Suado dentro de uma roupa com a qual trabalhei dia todo. Deslocado dentro daquele avião que me leva a 800km por hora, para o outro lado do mundo. Vou para o banheiro. É isso mesmo. Não vou ao banheiro. Vou para o banheiro. Confortável banheiro da Emirates. Preciso de água, de ficar sozinho, de me olhar no espelho. Lavo o rosto, os braços, tomo um banho quase inteiro. Barba e cabelos enormes. Quero chegar. Quero estar presente naquele espaço tempo deslocando-se, voando contra si mesmo. Vou perder um dia, o 23 não existirá para mim, no mundo dos terrenos. Será somente uma transição artificial dependente de máquinas e combustíveis. Eu vou dentro da barriga dele, baleia do novo Jonas, tentando estar alí, como a única possibilidade de estar alí. No vôo EK 570, eu me perdi de mim. Tava cheio demais, corrido demais, presunçoso demais salvando mundos. Haja água naquele banheiro. Depois sequei direitinho.

Voltei para minha poltrona e apaguei. Só acordei chegando em Dubai, umas doze horas depois. A exaustão me salva de muita besteira. Quero, um dia, morrer assim, exausto de viver. Vai dar pena, acho que sempre dá. Mas que vai ajudar vai.

Bem, o vôo durou 14 horas do Rio até Dubai, mas com o fuso, durou 20h. Chegamos a Dubai às 00:0h do dia 24 de junho. o dia 23 sumiu, definitivamente. Faz 40 graus! Entre o deserto da Península Arábica e o Golfo Pérsico, aquela cidade. Oi? Como? Sustentabilidade?Aquela cidade. Entro no aeroporto de Dubai e é começa o banho de oriente. Muçulmanos, Hindus, Indochineses, poucos ocidentais, o meio do mundo é aqui? Imenso. Nova exposição a quilômetros de indução ao consumo e, em meio a isso tudo, quero ir ao banheiro. Vou. Um corredor extenso, duas placas dividem o mesmo suporte. Wash Room (sala de banho/ de se lavar) e Prayer Room(sala de rezar). Sigo. Aos poucos vou me dando conta, estou entrando num espaço muçulmano, o banheiro é algo muito especial. Toda higiene é feita com água quente, então há muita água por todo lado e algum vapor. Ao lado da porta do banheiro, outra porta, que dá num quartinho onde todo tiram os sapatos; depois esse quartinho se bifurca em duas portas largas: a da esquerda dá num local com se fosse uma banheira/piscina grande com bancos de mármore. Só homens nesse local. Alguns estão sentados e lavam seus pés, enxugam e depois entram na outra sala a da direita. Meus olhos poderiam pular para fora das órbitas, de tanto querem ver. Tento me conter. Eu sempre tento. Olho para alguém em que reconheço autoridade, o moço da limpeza, que desde que cheguei conectou comigo, pelo olhar. Olho para ele acenando invisivelmente e pedindo para entrar sem lavar meus pés. Ele consente, entro. Uma sala não muito grande, silenciosa, uns quinze homens dentro, todos voltados para a mesma direção, Meca suponho, fazem movimentos de levantar e abaixar até encostarem suas cabeças no chão. Um deles canta uma melodia moura, com aquelas notas que vão deslizando em micro tons. Ah! Fiquei num canto sentado numa cadeira, para velhos imagino (essa parte desconsiderem). E fui mergulhando naquele ambiente, e ele literalmente penetrando em mim, e vieram imagens, vivas, densas com texturas e sabores desse ser religioso humano, construindo, desconstruindo impérios sobre um panteão de deuses frágeis e seus profetas loucos. Fui e segui para Calcutá profundamente tocado por tudo aquilo. Em minutos, me senti ligado àqueles homens, suas histórias, dores e delícias. Na saída, do outro lado do corredor vi que havia o Prayer Room das mulheres. Não entrei. O avião para Calcutá já era chamado.

Na viagem de 4,5 horas, entre Dubai e Calcutá assisti um filme, Logan, entre sonecas e acordares, e entre tomadas de nota de detalhes para esse diário. Sempre me chamou atenção a imortalidade do personagem Wolferine, e quando me disseram que, nesse episódio, ele morria, fiquei interessado em perceber como ele construiria as condições para morrer. Lá estava eu de novo no tema da morte/transformação. Shiva presente… dançando em mim.

Calcutá nos recebeu com um lindo nascer de sol, de São João, que óbvio, por aqui não faz nenhum sucesso.

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