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24/06 a lama que me(te) cura.

CARTAS DO FUNDO DO CORAÇAO E DO MUNDO

Diário dia 24 de junho de 2017

(…)Calcutá nos recebeu com um lindo nascer de sol, de São João, que óbvio, por aqui não faz nenhum sucesso.

Manhã cedinha, quente. Chegamos ao aeroporto de Calcutá. Grande, mas não enorme. Porém vazio. Estranho. Trocamos dinheiro, tentei comprar um cartão SIM, para ter internet no telefone, não tinha. Sim, mas cadê 1.350.000.000 de pessoas? Alguém sabe? Quando saio descubro: só entra no aeroporto que vai viajar, os amigos, parentes, agentes de viagem, esperam do lado de fora, depois uma corda pendurada ao lado dos táxis. De repente aquela multidão de gente. Do outro lado da corda. Assim eu cheguei em Kolkota, enquanto também chegava em mim, uma sensação minha, já conhecida: pânico. Cheguei, não posso voltar. “Quem me vê assim cantando, não sabe nada de mim. Dentro de mim mora um anjo. Que tem a boca pintada. Que tem a cara pintada. Que passa horas a fio, no espelho do toucador”. Por que vim? O pensamento não se segurava e a adrenalina governava geral, imagens, palavras, guarda roupas e pedaços de mesa, traspassavam meu corpo, incontroláveis como um rio em enchente. Respiro, vai passar. O seminário internacional, nossa apresentação, o gato doente no sítio, o projeto Cartas do Fundo, o roteiro inacabado, sem lugar reservado em todas as cidades do possível percurso, o filho trocando de escola, o texto de BH que a aeromoça me fez parar, e aquela India se descortinando dramática, dadivosa e indiferente à minha presença panicada, ali, toda, atrás da corda, perto dos táxis.

Sim, táxi; e a primeira lição sobre alma indiana: negociar preços é umas das partes boas da vida. Nenhum 1o preço deve ser o que será pago ao final. Será uma decepção para o comerciante se você aceitar. Negócio por aqui é uma relação dramática e interessada entre partes. É patético, eu, que sempre me orgulhei de não negociar preço, respeitando o que o outro declarou; como sinal ocidental de respeito ao privado, sem saber que me privava do principal: relacionar-me calorosamente com o outro. Explicitar meu desejo, minha necessidade. Privado como respeito… Ah não!, aqui não. Assim, antes de de entrar no táxi, da janela, negociamos o preço do aeroporto até a casa B&B(bed&breakfast - cama&café da manhã) que Almeida negociou, por internet. 350 rupias, 18 reais, escandalosamente barato pela distancia. Carro é uma coisa engraçada,

você está no local, passando pelo local, e não está no local, tá dentro de outro local, o carro, uma coisa engraçada. Um local que se desloca dentro de locais. De dentro do táxi, da frota Calcutaense de uns 40 anos atrás, morrendo cada vez que parava, eu e Almeida, cada um do seu do banco, embasbacavamos a olhos vistos. 'Olha ali, alá, caramba, vai bater, viu essa?', essa falação, ao final de um tempo, foi dando lugar a um silêncio, mas um silêncio… a India estava chegando em nós. Calando, curando, encriançando dois homens sensíveis. Dádiva suada. Sabe, o que é isso?

Não foi fácil achar a casa. FB6, região de Salt Lake City. Sem problema, o taxi parou umas tantas vezes, motorista sai e pergunta; volta; fala algo em Bengali com a gente, ao que respondemos 'yes, yes' com aquela cara amarela, de quem achou que falar inglês resolveria tudo. Anotei em meu caderno: "As línguas da India sobreviveram à colonização européia. Como terá sido isso?”. São 29 estados e 22 línguas oficiais, sem falar dos muitos dialetos. Chegamos e nosso anfitrião Dharmendra, jovem de uns 25 anos, nos recebe na porta. Aos poucos vamos descobrindo que a equipe que cuida da casa, propriedade de uma outra pessoa, se trata de pequena comunidade de homens, vindos de diversas partes da India, com histórias de perdas e sacudidas de poeiras, deixando marcas profundas e adoçando olhares com uma melancolia profunda, alegria fresca e simpatia comoventes. A troca de olhares é comovente, e não tô falando só da India. Mas, já deu para sentir que aqui privacidade passa por outros parâmetros. Em outras palavras: o buraco é mais embaixo. Já nessa chegada de aeroporto, táxi e B&B, muitas, mas muitas pessoas trocaram olhares comigo, o tempo todo, sorriram e, se eu mantivesse a relação se aproximavam. Fiquei muito interessado nesse comportamento, era como se tivesse achado minha raça. Eu sempre fui assim, olhando, cumprimentando, perguntando nome, chamava isso de roceirice, tô começando a achar que tem mais coisa debaixo desse angu.

Depois de arrumar algumas coisas no quarto, fomos dar uma descansada. Almeida logo adormeceu. E eu? Oi? Onde? Aquela batida diferente no coração. Nada a ver com sono. Levanto, deito, levanto, vou embaixo na cozinha, puxo conversa, volto, deito, escovo dente, olho a lista de cartas para escrever, penso que o pessoal no facebook não entendeu o convite para receber cartas, vou ao banheiro, olha aquele barbudo envelhecido, quem é esse cara? Finalmente desmaio exausto. Mas não foi um entregar-se ao sono, foi mais um rapto. Meu corpo raptou-se de mim. Insuportando-me naquele estado.

Nesse mês começam as monções, época de vários meses de chuvas fortes, às vezes passageiras. Fomos acordados por uma pancada forte de chuva. Almeida sorrisão! Eu…bem, decisão: “Deixe-me ir precisa andar” Não dava para continuar do lado de cá da corda. Meu corpo decidiu, pegou minha alminha barbuda pela mão e levou todo mundo para andar, de sandália havaiana com um número maior que meu pé, pelas ruas, vielas, praças, terrenos baldios de Calcutá. A sabedoria de meu corpo me levava pelas mãos para ser permeado radicalmente pelo presente. Ansiedade e pânico não suportam o presente. O presente cura tudo. Almeida, fantástico, sorrisão, embarca. Fomos para o Center Market, um conjunto grande de blocos de lojas entre marcas internacionais e produtos indianos. No caminho, lama, muita, lama de cidade, suja e fedida. Me lembrei de outro texto meu: “Nossa civilização não suporta o cheiro libertador de lama de enchente” (tá la no site do Cartas do Fundo). Aquela lama, os cheiros da cidade, cominho, curry, açafrão fresco, canela, gengibre, as cores(vivas) das roupas, as cores e as formas de uma cidade onde a vida se faz no inacabado dos prédios, muito velhos e sem manutenção, onde os sapatos duram até o final, onde o conceito de velho parece ser o de honradez, e de presença não aposentável (esse conceito nefasto ocidental, nos condenando ao descanso), tudo isso foi se dinamizando em mim. Quando cheguei ao Market, havia decidido, ia cortar a barba e fazer o cabelo e comprar as folhas especiais das cartas. Por sorte, lá encontramos um festival de comidas de toda India, Almeida mergulhou de cabeça, melhor, de boca. Eu, bem, comi umas coisinhas “very spicy”, mas logo fui… bem, havia chegado minha hora no salão de beleza.


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