Diário dos dias 26 e 27 de junho de 2017 (seg. e ter)
(…)"Foi aí que veio a grande oportunidade, óbvio, carregada de riscos. Rajj convidou João para ir passar a virada da noite do Eid Mubarak junto com sua família, na periferia de Calcutá, num bairro de imigrantes de Bangladesh."
Eu, sem internet me perdi do tal restaurante muçulmano. Quando me encontrei com Almeida, ele já havia almoçado e me disse que acabou convidando o Abdul, e que haviam se divertido muito aprendendo a comer com a mão direita. Eu estava ainda me sentindo bastante satisfeito, com o nutritivo café da manhã, mas confesso que estranhei a sensação de que já tivesse almoçado, aliás como se tivesse comido igual a um mulá (sacerdote letrado muçulmano). Estranho aquilo.
“Ele aceitou o convite para visitar a família de Rajj(eu confesso: torcia por essa escolha!). Se despediram do colega, já anoitecia. Uma longa caminhada até o metrô; milhares de pessoas de pessoas entrando, saindo de um enorme festival para Lord Krisna, que ocorre nas mesmas datas que o final do Ramadã. Estação enorme no centro de Calcutá. Muito calor, sem ar condicionado. Trens superlotados. Passa um, passa outro, só entramos no terceiro. Dentro do trem um gelo. Parecendo os trens da central. Eles suados, o trem, todos bem apertados (rimas bestas sem futuro, e pode ir tirando o cavalinho da chuva). Muitas pessoas olhavam para ele com… curiosidade, digamos. Cumprimentava do seu jeito, acenando com a cabeça para frente, ao que recebia um aceno lateral de cabeça, tipo, quando a gente quer dizer no Brasil, mais ou menos. Foram mais de 40 minutos indo, indo, indo. Não pensem vocês numa noite indiana do Bollywood, iluminada, com aqueles dançarinos aos centos, com eletricidade por todo canto. A coisa foi ficando bem escura, embora houvesse prédios tipo 'Minha casa minha vida’, de cinco andares, ao lado de montanhas de lixo acumulado. Quando saíram do metrô, ele estranhou uma correria grande, Rajj deu a entender que era para se apressar também para pegar um auto(Tuc Tuc). Do lado de fora centenas de pessoas se apertam, sem fila, para entrar em tuc tucs que naquele momento carregavam 8 pessoas onde caberiam 4. No auto que conseguiram pegar, só armários dentro, três na frente e quatro atrás. O motorista dirigia de lado. Surreal. Sobravam ombros para fora, o que é muito perigoso pois o trafego estava muito intenso e tudo vai junto. TODOS os retrovisores, de todos os carros e carroças e bicicletas e vacas funcionam fechados. TODOS buzinam o tempo todo(vacas, mugem). Festa. Nenhuma irritação aparente. A lei é: vai entrando, tudo se ajeitará
De repente, a conversa dentro do auto em que estavam mudou de tom, ficou mais animado que normal, caminhou para uma tensão; ele não entendia mas sentia. Simplesmente o motorista do auto parou e botou todo mundo para fora; João inclusive. Estavam os seis no meio do nada, numa auto estrada inacabada, sob viadutos suspeitos, Calcutá ao longe, uns 38 graus, poças d’água por todo lado da chuva da manhã, montes e montes de lixo malcheiroso, vacas dormindo, quase meia noite, indo para uma janta com a família do Rajj.”
Já em nosso quarto, na B&B eu, sem sono pelo fuso horário de 8:30h adiante e ainda não absorvido pelo corpo, como granola, escovo dentes, estou inquieto como se algo sério estivesse acontecendo. Sinto que preciso escrever, pego no diário daquele dia, me faz bem, arrumo mochila pois no dia seguinte, depois do almoço, Almeida e eu, mudaríamos para o Vedic Village, onde seria o encontro de trabalho para o qual estávamos em Calcutá. Sono vai chegando, quase 3:00h da madrugada. Almeida? Dorme tranquilo, com amuleto do filho comprado. Agradeço todo dia pela companhia desse amigão, o Almeida. Já falei isso para ele, o cara é de bem com a vida. Nada a ver com ser borra botas. Ele tem uma capacidade de absorver e deixar passar. Mesmo quando se irrita, durante é bem intenso, mas depois que passar passou. Grande mestre que trouxe à tira colo do Brasil. Tá vendo? India para que?
“ Foram necessários mais de 30 minutos naquela situação. João não sentia medo, mas a adrenalina está visivelmente disponível por todo o corpo. Arrepios e muita reatividade a qualquer movimento. Mas a quantidade de lixo e de água distraia um pouco toda a cena. Isso é coisa muito certa: distração faz um bem danado. Ela arruma tudo dentro da gente, do jeito que o corpo precisa. Distração é a concentração do corpo. Então por mais distraído que estivesse, não podia deixar de se perguntar, precisava ter sido tão radical o mergulho? O que o trouxera a desejar aquela situação? Gravou um vídeo ali mesmo, o qual nomeou: estou aqui, estou excitado, estou inteiro. Conseguiram um táxi, daqueles Lada russos, amarelos, porém uma linha mais arredondada(década de 70, produzidos na própria India), coisa de filme. Chegaram à casa da família de Rajj. Todos esperando, um apartamento simples num conjunto habitacional. Muitas conversas. Ele com mil perguntas, tentava selecionar as mais inteligentes, evitando as do tipo, para que serve isso aqui? Tentando aprender mais pelo contexto que pelo texto. Porém há coisas que saltavam aos olhos de um ocidental cristão: banheiro sem papel higiênico e com itens essenciais: balde, caneco e banquinho, e aquela torneira na altura da cintura. Essa torneira é mais importante que o chuveiro, que é pouco utilizado. Banheiro é sempre molhado, pois tem sempre certos banhos ocorrendo. Privada de agachar. Na casa não existia televisão (ele valorizou muito dessa parte), e a conversa era muito animada.
Lá pelas tantas, a conversa foi se direcionado para a festa do Eid Mubarak, que seria no outro dia, onde todos os homens muçulmanos iriam para uma mesquita, a certa hora; mas na falta de mesquitas para tantos 'muslims', haveria uma grande concentração num parque central da cidade. E então, em meio a essa conversa, ele fora convidado a participar junto com os homens da família. Por um segundo, alguns pensamentos, nível jornal nacional, passaram por sua cabeça, aos quais ele não deu atenção. Queria aceitar, mas ainda tentou um argumento de que não era de origem muçulmana, que estava apenas começando a aprender sobre essa identidade, e que estava muito honrado com o convite. A palavra ‘honrado’ foi o suficiente para interromperem toda o seu blá, blá, blá e trazerem várias ‘curtas’(batas longas) e ‘pijamas’ (calças apertadas na canela e muito bufantes do joelho para cima). Acharam uma combinação que agradasse a todos(todos em volta opinando, inclusive a avózinha). Bem, já estaria de bom tamanho o aprendizado, quando ele, não resistindo perguntou pelos banhos, perfumes e óleos, os cuidados preparatórios para oração. Foi uma aula de mais de uma hora, fantástica a preparação do corpo para louvar a Alah. Inclusive, dependendo da pessoa, com algumas depilações. Ele não teve dúvida, mergulhou em toda preparação. Fora uma longa noite aquela. Muito aprendizados, sobretudo no corpo.
A atenção com a qual os homens cuidam dos homens, e o apoio que as mulheres aportam para essa relação; toda uma arquitetura da casa, embora muito simples, toda voltada para os rituais religiosos cotidianos muito práticos, físicos, ele diria. Tudo isso começava a criar dentro dele um início de compreensão sobre o que leva a essa dedicação radical. Tudo ali é muito estruturante, definidor, certificador. O corpo prova. A roupa comprova. O comportamento traduz. Essa liturgia doméstica fantástica, cria condições para um certo aspecto de reconforto, diante do drama auto consciente que é ser humano.”
O dia 26 finalmente amanhece, e eu sinto como já estivesse na India a muitos anos. A intensidade das reflexões sobre cada sensação, olhar, sabor; o exercício cotidiano de escrever , ensaindo traduções disso tudo num conjunto. E pelo jeito havia apenas começado. A segunda feira amanheceu com cara de festa no ar. Dois festivais grande ocorrendo, um feriadão digno do Brasil. Saímos, eu e Almeida, em busca de últimas lembranças para sua turminha e, quem sabe visitar algum dos dois festivais o Eid Mubarak, e/ou o Festival de Lord Krisna.
"Acordaram cedo, pois ainda havia banhos a serem feitos… pés, mãos, nuca, rosto, barbear. Depois disso vestir a Curta e o Pijama(esses dois nomes são claramente de origem portuguesa). O dia já amanheceu quente, e a curta de João era linda, marrom escuro, bordada de dourado; literalmente um inferno ao sol.
Uma hora depois estavam os três homens da casa chegando a um parque central de Calcutá. Milhares e milhares de homens andando rápido, se possível na sombra, em direção ao som que entoava cânticos. Foi uma cerimônia muito interessante para João, sobretudo porque não sabia do que estava se tratando as palavras, então podia se entregar à coreografia do levantar-se e abaixar-se, com vários movimentos intercalados, e sentir, sem compreender racionalmente o que todos aqueles movimentos causavam em seu corpo. Foi surpreendente para ele: sentia entrega, foco, unidade, apagamento do eu, fortalecimento do eu, comprometimento. Ao final todos se abraçavam, com três encontro de peito, direita, esquerda, direita. Asalam Waleikum! Waleikum Asalam! Paz esteja com você!” Se despediram, agradeceram, João suando feito uma mula, entrou num restaurante, trocou de roupas, devolveu curta e pijama, profundamente agradecido a Rajj e sua família. A despedida foi bonita e melancólica. Não ofereceram contatos e ele tampouco pediu. As marcas estava escritas em seu corpo e alma, livrivos.”
Finalmente chegamos Almeida e eu ao parque central, a cerimônia muçulmana havia acabado de ocorrer, e pudemos encontrar com milhares de homens com batas compridas, suados feito mulas, saindo da parque como um rio por um lado de uma grande rua. Do outro lado da mesma rua, um outro rio, mas desta vez de homens e mulheres coloridos, dançantes com seus tambores, e que corria em direção a uma outra parte do mesmo parque, era o Festival de Lord Krisna. Nós dois ali no meio daquilo tudo, querendo viver, um pouco pelo menos do quase passava.
Ah1! O Namastê que me mandaram falar, com as mãos no peito, não conseguia sair natural. Abandonei na segunda tentativa. Ficou opa mesmo. Ah2! Daquele dia em diante, decidi tocar em todo mundo/homem que me olhasse e que estive ao alcance dos meus braços. Queria tocar pelo menos uns 200 intocáveis durante essa viagem. Como não sei identificar quem é quem, vou logo tocar todo mundo que estiver por perto. Esse virou meu mantra secreto. Bobeou eu boto a mão. Grande e profunda oração. OM!