Diário dia 28 a 30 de junho de 2017
(…)Ah1! O Namastê que me mandaram falar, com as mãos no peito, não conseguia sair natural. Abandonei na segunda tentativa. Ficou opa mesmo, seguido de uma tentativa de aperto de mão e batidinha no ombro. Ah2! Daquele dia em diante, decidi tocar em todo mundo/homem que me olhasse e que estive ao alcance dos meus braços. Queria tocar pelo menos uns 200 intocáveis durante essa viagem. Como não sei identificar quem é quem, vou logo tocar todo mundo que estiver por perto. Esse virou meu mantra secreto. Bobeou eu boto a mão. Grande e profunda oração. OM!
Com o passar dos dias fui descobrindo que o queria mesmo era eu ser tocado. Que me sinto muito intocável, muitas vezes, porém no sentido de inacessível, empertigado, protegido, amedrontado e só.
Antes que eu me esqueça, aqui vai aqui uma listinha de sobrevivência na India:
Faça sempre: arrote, libere flatos, cuspa, urine e defeque sem cerimônia, em qualquer lugar; ofereça e peça comida; sendo homem converse com qualquer homem; participe da busca de solução de qualquer problema de qualquer pessoa que esteja na rua, trem, ou qualquer lugar; prepare o Xai, o café, o prato para outro e pode já ir servindo na boca; olhe nos olhos e aguarde o outro olhar, quando isso acontecer, só sustente; deite e durma em qualquer lugar; fique atento, sua confirmação de lugar no trem não quer dizer grande coisa; negocie sempre o preço das coisas, isso causa grande prazer por aqui.
Não faça nunca: se for homem, dirigir-se a uma mulher; pedir carne em restaurante Hindu; esperar por um banheiro;
Faça de vez em quando: se for homem e jovem ande mãos dadas, ou abraçado com seu amigo; ponha a mão numa vaca só se tiver um pedido de bênçãos a ser feito. Nada da tocar nas vacas sem um propósito.
O que chamou atenção? Com certeza a quantidade de vezes que escrevi - se for homem. Não consegui ainda entrar em contato com nenhuma mulher indiana, em privado, um homem e uma mulher conversando, sem ser as colegas de trabalho. Nenhuma. Em muitos lugares só há homens. É tão somente uma constatação: as mulheres indianas estão num lugar claramente diferenciado do dos homens. Para um homem branco, estrangeiro é praticamente impossível acessar o mundo feminino dessas terras de cá. Não obstante essa distância, pude observar e sentir grande alegria na forma como as mulheres se tratam entre si; algumas insinuações em relação a paqueras. mas ainda não vi ninguém se beijar ou fazer carinho em público. Poucos casais de mãos dadas, sempre jovens. As mulheres andam com as mulheres e as crianças; os homens com os homens e as crianças maiores. Quando são casais às vezes andam lado a lado, mas normalmente um na frente outro atrás. AH! Quanta riqueza!! Quanto mistério.
Nesses três dias estamos hospedados, Almeida e eu, no Vedic Village, em Kolkata. 3,5 alqueires de quartos, chalés, hortas, campos de tênis e cricket, construções todas com telhado de palha e internamente a estrutura e forros todos de bambu gigante e diversos outros tipos de bambu. Uma obra de arte!! Vamos trocar aprendizagens com mais quatro países (China, Bangladesh, India e México) sobre o trabalho que coordeno em Petrópolis juntos à Prefeitura Municipal/Defesa Civl/Sec.de Educação, com comunidades vulneráveis a eventos sócio climáticos. Enfim, está sendo um encontro maravilhoso, muito participativo, que daria em si um livro inteiro…Mas destaco desses três dias o poder da escuta qualificada dos casos, do diálogo profundo entre nós os atores, da reflexão individual e da produção escrita rigorosa e bonita/viva. Está sendo um banho de construção de conhecimento a partir da prática, conduzido por um grupo muito cuidadoso. Grande oportunidade! Uma vez um querido amigo e professor o Andreas Schubert, grande estudioso do Movimento Zapatista no México, me contou que na língua deles a palavra escutar é a mesma palavra, ou com a mesma raiz da palavra libertar. Quando ouço a uma outra pessoa, eu a liberto de um conteúdo, de um espírito, de um fogo que estava queimando preso dentro dela. Ah! Esse tesouro delicado de compreensão, carrego aqui, bem no fundinho da alma.
O Eid Mubarak, com suas comidas, temperos e calores de 40 graus, deixou marcas em meu corpo, para muito além dos vários banhos que aprendi, das (…) depilações e perfumagens: estou com um discreto, mas presente desarranjo intestinal. Macaco velho, não viajo sem meu carvãozinho vegetal. Iniciei tratamento pesado - dois comprimidos e muita hidratação. O carvão não deixa o intestino esquentar e absorve água, uma maravilha. Mas sabendo que poderia piorar, inicie a estratégia dois: chá de folha de goiaba. Será que tem aqui? Deve ter. Comecei a explicar para o garçons… imagina a cena: uns doze garçons ao meu redor e eu explicando que precisava folha da árvore de goiaba, de preferencia os brotos. Veio manga, veio banana, romã, veio até goiaba, mas folha de goiaba, nada. E eu tentando manter uma certa… discrição, porque, tudo é bem público por aqui. A notícia corre. Daqui a pouco o Vedic Village inteiro tá sabendo do brasileiro cag… Que situação! (Mas não foi nada comparado como que viria a acontecer…) Até que apareceu um garçon anjo que entendeu e trouxe uma árvore inteira de folhas de goiaba. Fizemos o chá e comecei a tomar. Separei várias folhas e coloquei na mochila, just in case…A essa altura todo mundo já sabia, em minha mesa tinha remédio de todas as partes do mundo.
No 2a dia de seminário fomos visitar dois trabalhos similares ao que fazemos em Petrópolis. Duas áreas de ocupação informal(favela), com alto nível de miséria e todo seu universo-perverso, e sustentado por uma dignidade emocionante das crianças e mulheres moradores locais. Fomos a uma escola, numa sala de aula de 9m2 e depois a um centro de juventude de 20m2. Mas a quantidade de gente envolvida com tudo isso, meu deus… Recebemos apresentações de mapas de risco, de sistemas de evacuação, pequenas peças de teatro e canções educativas sobre esse tema. Mas uma presença, uma força na voz daquelas crianças, jovens e mulheres. Agradeci tanto, mas tanto por minha vida estar sendo assim, ao lado de pessoas com tamanha dignidade em condições tão desafiadoras. No final, ofereci de cantar uma canção guarani 'Yo Paraná’, e acabamos dançando uma roda de ‘indianos’ brasileiros com indianos/as hindus. Foi meu contato mais próximo com as mulheres. Elas falaram com a gente, fizeram perguntas, com timidez e sustentaram atenção para nossas respostas.
Depois, lanche na van, umas 15h, 37 graus, vira e mexe cai uma chuva e abre o sol, imagina o vapor odorento subindo da mistura orgânica do chão, roupa toda molhada de suor e chuva, uma festa. Agora teríamos um momento turístico, indo visitar o Victoria Memorial (um palácio em estilo neoclássico todo em mármore, construído para marcar a colonização britânica por aqui. Kolkata foi um dos pólos mais fortes dessa colonização). Hoje foi o 3o dia daquele feriadão do Eid Mubarak e do Festival para Lord Krisna. Muita gente vestida lindamente nas ruas. Essa foi a parte mais tocante dessa tarde, a beleza e as cores desse povo sofrido(aos meus olhos ocidentais abestalhados). Mandei umas fotos outro dia.
Tinha ido só duas vezes ao banheiro, aquele de agachar, sem papel higiênico, a canequinha, sente o drama. Comigo carregava dois litros de chá de folha de goiaba. Estava bem auto confiante no processo de recuperação como um todo. Depois do Victoria Memorial, teríamos uma hora de rua/compras quem quisesse e depois um jantar meio chique, oficial, num restaurante no centro. Bem, ocorreu que… não sei como dizer… Vou fazer assim: Meu querido diário, hoje passei por uma situação muito constrangedora, em frente à grande estátua da Rainha Victoria da Grã Bretanha, com uma cara muito brava. Fui liberar uns flactoszinhos(peidinhos), coisa à toa, que você nem repara, só faz… enquanto fotografava as belas indianas com seus vestidos e, bem, algo a mais foi liberado.
Lá estava eu, a 37 graus de temperatura, literalmente cagado, em frente à Rainha, em pleno parque, gigantesco, sem um banheiro, com centenas de pessoas ao redor. Parei. Respirei. A primeira coisa que pensei: como vou contar isso para o Brasil inteiro? Não vou contar. Como não? Calma. Está escorrendo? Não. Ok. Cadê o Almeida? Porra esse cara não sofre? Não tem dramas, não sente pânico, não se caga na frente da rainha? Tá meio desbalanceada essa história. "Almeida vem cá. Que é que foi Tião? Eu me caguei!! Onde? Aqui! Agora! Mas acho que foi pouquinho. Não tá escorrendo Com vou sentar no carro? Como vou andar até o portão? Como vou ao jantar chique? Com vou continuar fazendo consultorias?” Meu mundo caiu.. e me fez ficar assim… Almeida caiu na gargalhada. Riu de chorar, e eu? Também ria, mas tinha medo de…sabe… liberar mais… me contive. “Vê se tá aparecendo! Não tá não Tião. Tudo bem. Esse cara, o Almeida, é muito bom ter por perto. “Vai devagarinho" E tome a rir!! No carro sentei de lado, tipo hemorróidas. E o medo de ficar cheirando? Ar acondicionado é seco, não deixa cheiro aparecer. ufa.. Ah! Que situação. Mas, tirando o constrangimento, o resto era só graça. Eu cagado em Calcutá. Pedi para me levarem direto para uma livraria boa que tinha no centro. Sabia que havia um banheiro lá. Entrei, passei por Amartya Sen, por Gandhi, por Tagore, nem dei bola. Meu foco era claro: o banheiro! Fique bastante tempo por lá.Todo aprendizado muçulmano sobre banhos ajudou muito nessa hora, sem falar nas depilações. Sai sem cuecas, claro, o jantar, lembra? Cara de paisagem e um bom nome de filme: Deixei minhas cuecas em Calcutá. Almeida já veio me mostrando um super instrumento que havia achado, já nem se lembrava do amigo cag…. Uma dádiva esse cara.
No dia 30 terminamos o seminário, eu já de mochilas prontas, jantei com todos os colegas queridos/as, nos despedimos e, às 20h tomei o taxi para a imensa Estação Howrah, de onde sairia meu trem para BodhGaya, onde Buda se iluminou, no século VI antes de Cristo… Agora ia começar a peregrinação… Oi? Alguém falou agora?